Calado Mateus
O barquito entrou, muito devagar, numa outra gruta, aberta a nascente. Havia um silêncio estranho qualquer coisa misteriosamente vaporoso, quebrado apenas pelo chapinhar dos remos e pela ondulação que, suave, acariciava os rochedos vermelhos
A gruta distendia-se por duas salas, de cujo tecto, caprichosamente recortado, pendiam algumas colunas, como se fossem dedos finos apontando um verde esmeralda.
E Ti João disse, assim como que a medo de quebrar o silêncio quase religioso
_ Sabes, Zézito, esta gruta também tem uma história bonita que fala numa sereia encantada. Já ouviste falar em sereias?
_ Já, Ti João _ respondeu o menino._ Mas gostava muito de ouvir a sua história... _ Pois conta-se que uma sereia, chamada Flandres, a mais bonita de todas as sereias
que habitavam os mares das redondezas, ficou um dia tão maravilhada por conhecer esta gruta que nunca mais na sua vida a pôde esquecer. E então, dizem que no dia 10 de todos os meses, à hora
em que o Sol começa a despedir-se do horizonte, ela vem aqui inundar o céu com as suas canções, canções que se prolongam, renovadas, milagrosamente, todos os dias. E que elas são tão bonitas, tão bonitas, que os pescadores que navegam por aqui perto não podem deixar de suspender a pesca para as escutar... E que as gaivotas deixam os seus voos às voltas e o gralhar barulhento e ficam muito quietas nas rochas ou a planar sobres ondas, para não fazerem barulho... E que os peixes se acomodam no mar e deitam as cabecitas de fora, para também as ouvir.
_ E o Ti João também já alguma vez a ouviu? _ perguntou o Zézito, impressionado com o que ele contara.
O pescador ficou, por momentos, em silêncio e respondeu.
_ Já. É verdade que também já a ouvi, que já a tenho ouvido muitas vezes. Mas nunca a vi.
Nem consta que alguém a tivesse visto alguma vez, a não ser um menino...
_ Um menino?!
_ Sim, um menino que veio uma vez até à ilha montado num golfinho azul cujo dorso brilhava como se fosse de prata e que contou que a sereia tinha longos cabelos negros que lhe caíam até à
cintura, enfeitados de malmequeres brancos e uns olhos castanhos, rasgados, onde brilhavam estrelas. Ao princípio, é verdade que ninguém acreditou.Mas ele tornou a vê-la muitas vezes. E, de cada vez que tal acontecia, contava sempre que a sereia de cabelos negros que lhe caíam até à
cintura, enfeitados de malmequeres brancos, lhe falava de coisas maravilhosas e lhe cantava cânticos cheios de alegria, mais bonitos,muito mais bonitos que os próprios búzios.
Mariano Calado in "barco de cortiça"(excerto)
terça-feira, 18 de novembro de 2008
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9 comentários:
Olá Isabel
Sabe que o seu Pai me lembra Sophia de Mello Breyner, estas histórias de encantar fazem-nos sonhar e voltar à idade da inocência, tal como o menino, que só ele podia ver a sereia. Faz bem em publicar os textos do seu Pai, gosto muito do modo como vê o mundo.
Beijinhos da amiga,
Isabel
Olá Isabel, como fico contente por ver que está a recuperar tão rapidamente.
Em relação ao texto ter semelhanças com as histórias da Sophia, talvez tenha razão, sempre a ligação ao mar, às gaivotas, às histórias inocentes, à infância.
Nós tínhamos contacto com a Sophia, e lembro-me de serões naquela altura muito aborrrecidos para a criançada, mas que agora já fariam todo o sentido.
Nós costumávamos passar férias na ilha das Berlengas e aí sente-se tudo isso.
O mar maravilhoso, as grutas escuras onde só se vê o mar transparente com tudo o que podemos alcançar no fundo, as estrelas do mar, os búzios, os corais....
Parecia um mundo só existente nos livros, e nós vivemos essas experiências e imaginávamos coisas,
piratas, tesouros, fadas...
O Ti joão existia realmente era um pescador que vivia na ilha todo o ano e contava as suas histórias de marinheiro, a mulher era a Ti Maria, e nós andávamos atrás dele, não era muito simpático, carrancudo, ar de marinheiro mesmo.
Acho que amaciou com a idade, mas era fantástico.
caminho idêntico naturalmente, sem dar por isso sou muito infantil a escrever e é o que gosto de fazer.
Beijinhos e até logo.
Ah! recebi os mails, fantásticos
Obrigada
Como me enviam muitos, quando tiver alguns dignos de enviar fá-lo-ei.
Isabel
E comi qualquer coisa:
Eu segui um caminho.....
Que ternura!!!
Eu também gosto muito de histórias sobre sereias....
Obrigada pela visita
Marta
olá Isabel,
Que encanto de poema!
Na verdade faz-nos sonhar com coisas mágicas, belas!
Gostei muito.
Um abraço
Viviana
Obrigado pelas palavras deixadas no meu blog de poesia.
Bem haja
sonhar, sonhar, as crianças,
o mar, as sereias, lindo, todo o conteúdo num belo texto...
e há sempre um "quê" de verdade nestas narrativas
beijinhos
* Quem é o Mateus Calado? Estou encantada com a imagem da sereia.
* A história da sereia é tao poética, que tenho pena, que seja só um excerto.
* A sua resposta, Isabel, à outra Isabel é quase tao excitante como a própria história da sereia.
Vale sempre a pena vir aqui!
Há coisas que só os ouvidos de uma criança conseguem ouvir.
Lindo conto.
Beijinhos
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